A chuva

A chuva são riscos paralelos inclinados que enevoam a paisagem.

O sussurro dos pingos no telhado e o frescor perfumado que exala do solo acendem uma sensualidade no ar. Tudo fica mais romântico, recatado, intimista.

Do barraco de madeira onde me recolho, avisto o Rio Capibaribe tornar-se mais caudaloso e revestir-se de uma superfície crespa, ferida pelas gotas vindas do céu juntando-se às suas águas.

O frondoso pé de cajá, intumescido pelo banho refrescante que vem lavar suas galhadas e seus frutos amarelos, queda-se pesado sem, contudo, deixar de balançar ao vento, respingando o excesso de água que escorrega pelas folhas miúdas.

No chão formam-se pequenas lagoas salpicadas por agitados pingos que dançam sobre o recém formado espelho d’água.

Na rua deserta um casal irrompe em corrida solidária, apoiando-se mutuamente para escolher onde repousar as passadas longas de forma a evitar os pontos mais enxarcados. Dirigem-se para a marquise mais próxima de uma pequena casa comercial de portas cerradas. Encostam-se, espremidos à parede, tentando evitar o chuvisco fustigado pela brisa a invadir seu pretendido abrigo. Após sacudir o excesso com quê foram atingidos, se entreolham e sorriem do próprio infortúnio, preferindo um abraço aconchegante, para se aquecer. Ou simplesmente comungar a emoção.

Mudo o olhar que a essa altura parece indiscreto e percorro o resto da rua, até onde a vista alcança. As portas e janelas fechadas escondem-se por trás das franjas em cascatas que escorrem da linha dos telhados. Nos detalhes de uma casa percebo um rosto que afasta a cortina para sondar, como eu, através da vidraça da janela, o cenário diluviano.

Um carro atravessa o aguaceiro abrindo com seus pneus dois sulcos improváveis, que imediatamente se fecham após sua passagem, deixando um rastro efêmero e provocando um ruído delicioso da água sendo “esmagada” e lançada para o lado, em ondas discretas.

O casal “chuva-vento” se abraça numa dança irreverente que prescinde de ensaios, mas que nunca perde o compasso, seguindo ambos na mesma direção e dando guinadas e rodopios espetaculares e alegres, ora rápidos e agitados; ora lentos e namoradores, num esfregar-se indecente.

Adivinho como a terra responderá, em breve, com brotos verde-claros, o esforço do agricultor ou do pássaro que semeia colaborativo. Mas, na cidade, em contrapartida, se instala uma lentidão preguiçosa. Na obra, as betoneiras silenciaram e o frenesi de carros de mão entorpeceu. Somente os tic-tacs de tijolos e azulejos sendo assentados nas partes internas revelam a agilidade dos profissionais mais dedicados, que trabalham por produção.

Sobrevém inspiração. Aguça-se a imaginação. Agita-se a libido. Afloram os cheiros. Predominam os ruídos mais leves, quase silenciosos. Tudo é suavidade e frescor.

Amo a chuva. A paisagem riscada e açoitada pelo vento que brinca de acentuar os tons cinzas.

Nunca consegui submeter o pincel e a tinta para eternizar tão doce espetáculo. Admiro os pintores que conseguem esse feito. Continuarei tentando. Mas arrisco dizer que sou inibido pelo medo de macular a cena real: essa que agora se desdobra, me fascina e impressiona de forma indelével a tela da memória.

Para que outra pintura? Apenas queria essa eternizada.

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